quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Histórias de outra Curitiba

Histórias de outra Curitiba
Cardosofilho
Narro-lhes caso bastante antigo. Varou os anos, contado de uma geração a outra, como de comum acontece, até que o viúvo do Cristo Rei o trouxe a mim.  A casa em que tudo se passou já não existe, assim como desapareceu a Curitiba de então. Existiu, na avenida João Gualberto. Um daqueles majestosos casarões que o progresso devorou sem piedade para abrir espaços a edifícios. Acomodem-se, pois, amigos, e vamos a ele.
Um cidadão costumava passar a pé em frente dessa morada, imponente mansão antecedida de amplo e verdejante jardim. Apanhava o bonde próximo dali. Certo dia, na volta ao trabalho depois do almoço, e seria uma hora da tarde, divisou no jardim uma menina loira, de pele clara como leite, a brincar num balanço, e seus longos cabelos dourados agitavam-se ao vento e ela sorria feliz. Uma encantadora menina, considerou o homem, e a cena o encheu de ternura. Viu-a outras vezes a balançar-se e, numa oportunidade, não resistiu e acenou-lhe, e ela graciosamente respondeu. A partir de então, sempre que a encontrava brincando no jardim, a cumprimentava com o aceno de mão e ela o retribuía com um sorriso.
Passar em frente ao casarão converteu-se para ele em imposição sentimental. Sentia falta se não a via. A criança, tão bela, e se diria na época, mui grácil, por alguma razão inexprimível o comovia. Acontecia de dia ou outro não vê-la, e ele contemplava com uma ponta de tristeza o balanço vazio. Mas ela reaparecia no dia seguinte e a rotina de acenos se retomava e o fazia feliz. Veio a ideia de presenteá-la. Coisinha simples, um agradozinho, e considerou adequado uma caixa de bombons. No dia seguinte, com a caixa de doces embrulhada em papel cor-de-rosa e amarrada com fita, dirigiu-se à frente do casarão ansioso para entregar o presente e conversar um pouco com ela, e lhe perguntaria o nome e diria o seu, e assim deixariam de ser conhecidos apenas de vista e passariam a ser um pouco amigos. Mas não a encontrou. Lamentou-se algo frustrado, mas faria a entrega no outro dia. No dia seguinte, também não a viu no jardim. Aborrecido, caminhou para o ponto do bonde. Animou-se, contudo, pensando que amanhã, com certeza, ela estaria lá.
Ela não reapareceu nos dias seguintes. Talvez estivesse doente, e a possibilidade o entristeceu. Os dias seguiram-se sem novidade. O que teria havido?, ele se perguntava, com a preocupação que fazia pouco sentido, pois ela continuava a ser para ele uma menina quase estranha, cujo único vínculo a ligá-los era o de se verem de longe, ele na calçada e ela no balanço do jardim, e a troca de acenos. Nada além. Mas o sumiço o instigou e ele decidiu perguntar. Assim fez. Penetrou no largo jardim, avançou por um caminho de pedras escuras margeado por arbustos e flores, chegou à maciça porta de entrada, ainda guarnecida por uma aldrava de bronze, e apertou a campainha. Por trás da porta, o silêncio. Acionou de novo a campainha. Ouviu, por fim, ruídos vindos do interior da casa. Abriu a porta uma senhora já idosa, e ele presumiu que tivesse mais de setenta anos. Explicou rapidamente o que o levava a incomodar a senhora. Queria notícias da menina que costumava brincar no balanço do jardim e também lhe entregar pequeno presente. A senhora o fitou de modo estranho. Havia aturdimento em seus olhos. Não, não, enfatizou, não havia nenhuma menina ali. Certamente tratava-se de engano. O espanto agora era dele. Como não havia, se ele a encontrava quase diariamente brincando no jardim? A senhora repetiu a informação. Ele estava equivocado, não insistisse, por favor, e, assustada, fez menção de fechar a porta. Ele persistiu, e a descreveu para a senhora, era uma garota linda, de pele e cabelos muito claros, que lhe acenava sorrindo a divertir-se no balanço. Diante do insólito da situação, a senhora arriscou permitir que o estranho, quem sabe maluco, entrasse na casa. Pediu que a acompanhasse. Caminhou por uma espaçosa sala mobiliada com móveis pesados, escuros e antigos, de beleza algo decadente, e os sofás revelavam no desbotado do veludo a ação dos anos. Dirigiram-se para uma segunda sala, na qual havia uma lareira. Encimava a lareira uma base de mármore, sobre a qual repousavam vários porta-retratos ostentando fotografias amarelecidas. Ela parou, virou-se para ele e pediu-lhe que olhasse as imagens. Ele o fez, uma a uma. De repente, a menina! Sim, não havia dúvida, era ela! Um arrepio o percorreu. Com o dedo indicador, apontou para a fotografia envelhecida e disse à senhora: “É esta a menina”. A senhora empalideceu, os lábios lhe tremeram, sentiu uma espécie de vertigem e teve de apoiar uma das mãos na lareira. Era muito difícil continuar a conversa, que enveredara pelo absurdo. Passados alguns segundos de estupor, reuniu forças e respondeu: “Essa menina, meu senhor, era a Eugênia e faleceu há mais de trinta anos”. Não era possível acreditar, foi o pensamento que ocorreu a ele. Havia alguma coisa muito errada em tudo aquilo, talvez algo que a senhora queria ocultar. Morrido como? Que história era aquela? Estaria louco?, insistiu. Ela lhe repetiu, com a fala titubeante e os olhos se enchendo de lágrimas, que Eugênia morrera havia mais de trinta anos, de tifo. Que era o que podia dizer, e o mais lhe fugia à compreensão. E assombrada pelo caso e amedrontada pela presença daquele homem e sua história fantástica, pediu-lhe que, por favor, se fosse. Ele quis perguntar mais sobre Eugênia, empurrado por aterradora curiosidade, mas a senhora repetiu-lhe “Por favor”, com ênfase que eliminou qualquer possibilidade de a conversa prosseguir. Contemplou mais um pouco a linda menina da foto, confuso e emocionado, virou-se lentamente e caminhou para a  saída. Antes que a pesada porta se fechasse atrás de si, ouviu a senhora pedir-lhe que não retornasse. Assentiu com leve meneio da cabeça e caminhou pelas pedras escuras em direção ao portão, vergado pelo enigma que lhe desafiaria o entendimento pelo resto de seus dias.

Agosto de 2017.

 

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