segunda-feira, 1 de agosto de 2016

A verdade cerebral

A verdade cerebral
(resumido – ver artigo inteiro em www.crmpr.org.br)
Iátrico, Conselho Regional de Medicina do Paraná, 27:36-38, 2011
Paulo Rogério Mudrovitsch de Bittencourt


A característica do processo mental saudável é a sua harmonia com a impressão sensorial real do presente, ou com a memória do passado. No delírio esta harmonia se perde. Processos mentais deixam de corresponder à realidade.
Existem:
·       idéias falsas: “delusions”;
·       imagens sensoriais sem impressões sensoriais: alucinações;
·       impressões sensoriais reais podem excitar imagens sensoriais errôneas, chamadas de ilusões, que podem ou não parecer verdadeiras à pessoa;
·       “deception” é uma ilusão que a pessoa identifica como tal.
Esta introdução foi traduzida quase ipsis literis de WR Gowers (1888). O linguajar português parece se omitir nesta área do conhecimento, disputada e polêmica, motivo de muito da minha produção intelectual. Como neurologista interessado nas funções intelectuais, mentais e comportamentais do cérebro. Como escritor, no “Fora da casinha”, a dificuldade com a adaptação de palavras das línguas arcaicas e modernas para a linguagem brasileira foi grande. Talvez a definição da realidade seja complexa, transcultural, multidisciplinar, ao mesmo tempo em pleno desenvolvimento, e muito antiga. A verdade é conhecida há séculos, em línguas que se modificaram. Portanto, é poliglota no sentido mais amplo da palavra. Já se trata de um pequeno delírio querer que tudo se esclareça justo em nossa língua. Talvez não seja um objetivo real expressar a verdade em uma língua moderna, de evolução recente.
Aqui “delusion” é traduzido pela comunidade “psi” como delírio, o que claramente não satisfaz o significado da palavra. Delírio é um filme inteiro que uma pessoa põe para fora, algo que o sistema nervoso central entrega ao ambiente, como a fala, a marcha, a força muscular, os movimentos dos olhos ou da face. Trata-se principalmente de um output do sistema nervoso central. Delusion é um acontecimento isolado, como uma cena, um ato, no máximo um capítulo, e se refere a algo que a pessoa sente. Trata-se, essencialmente, de um input do sistema nervoso central. No sentido neurológico, como os sentidos da visão ou da sensação vibratória, é algo que vem do ambiente para o sistema nervoso central. Uma tradução melhor seria a óbvia: “delusão”.
Talvez a maior dificuldade cultural esteja em conceitualizar que nossa mente pode perceber a realidade de uma maneira errônea. Não só a realidade plástica em torno de nós, mas também o que se passa na mente dos outros. A percepção do estado mental, das intenções das pessoas com quem temos contato, colocado desde os anos 90 na “teoria da mente”, faz parte da realidade do ser humano desde os primórdios da raça, há 40 mil anos atrás, ainda na África. Charles Darwin, em um livro menos conhecido que “A origem das espécies”, já parece indicar que animais e várias raças humanas tinham esta capacidade. Ou seja, a leitura da realidade mental dos outros, inclusive animais, é um fenômeno arqui-genético, está nos genes desde antes de a espécie evoluir.
Mais difícil ainda parece ser conceitualizar que um erro de percepção de realidade possa ser espontâneo. Brotar do cérebro, sem uma causa óbvia nas coisas do dia-a-dia. Produto de um processo mental não saudável, doente. Para Gowers em 1888, isto era corriqueiro, estava em seu livro texto.
O Shorter Oxford English Dictionary é uma boa fonte da origem de palavras em línguas européias. Ali verificamos que “delusion” vem de to delude, do latim tardio, romanesco ou francês antigo; de + ludere. A mesma origem que nossa palavra “lúdico”. O prefixo indica descolar, retirar, portanto delude é brincar enganando, mock, play under the pretence, cheat, impor falsas pretensões ou credos. “Deception”, uma peça de enganação, de truque, como a arte de um mágico, um ato de enganar como quem cola em uma prova, também vem do antigo francês ou do latim tardio. Tem a mesma raiz que enganar, to deceive, de + capere, esta última palavra significando tomar, pegar.
Palavras pequenas, de poucas sílabas, são coloquiais na língua inglesa. Vem desta língua popular do fim do império romano, o romanesco, que também deu origem às chamadas línguas latinas. Os monossílabos, como Paint it black, As tears go by, Get back ou Let it be, são saxões, teutônicos, mais antigos e primitivos. Polissílabos como hallucinari, allucinari, vem do latim mais apurado, ligado aos rituais eclesiásticos cristãos e às classes dominantes do império romano.
Talvez a limitação cultural não seja especialmente deixar de perceber que uma “delusão” pode ser um acontecimento espontâneo, uma imagem sensorial errônea, como escreveu Gowers em 1888. É possível delimitar esta diferença cultural à divisão entre Europa nórdica e latina? Será que todos já sabiam disso antes de 1800? Será que o racionalismo lógico dos iluministas obscureceu esta percepção durante algum tempo? Uma consequência do iluminismo, a psicanálise levaria a uma excessiva psicologização dos problemas mentais que persiste até nossos dias. E a psicanálise seria um evento latino? Sua origem foi em um vôo de Paris, onde Sigismund Freud, neurologista, foi treinado, para Viena, onde trabalhou a vida toda como psicólogo e escritor. Lembra o vôo de Maomé, de Jerusalém a Mecca. Até hoje as pessoas preferem achar que suas visões, experiências divinas, alucinações, ilusões, delírios, tem causa no dia-a-dia, em traumas do passado ou em estados de sofrimento do presente. É mais difícil para a maioria das pessoas entender que um sintoma mental pode ser simplesmente o equivalente cerebral de uma unha encravada, de uma artrite, um vitiligo, e que pode melhorar com remédios ou com técnicas cognitivas.
Na verdade, a realidade se trata, de certa maneira, de uma opção quantitativa. Quanto do real um homem pode estar pronto para encarar? Quanto do touro ele pode pegar pelo chifre? Quanto do seu Keith Richards ou do seu Michael Jackson pode aceitar? E uma mulher, quais serão seus demônios? Todas sabem quem gostariam de ser: uma Joana D’Arc loira que escapasse da fogueira. Mas faria bem uma idéia melhor do que são.
O próximo passo fica mais fácil se o corpo está equilibrado no pé de apoio. Fica límpido o horizonte, fluido o processo mental, que para ser saudável precisa estar em harmonia com a impressão sensorial real do presente, e com a memória do passado. É simples? Absolutamente, de maneira nenhuma. Mas dá para aprender, meio como andar em uma bicicleta de uma roda só.
Referências
1.    WR Gowers. Diseases of the nervous system (1888) Blakiston, Son and Co, Philadelphia. The Classics of Neurology and Neurosurgery Library. Gryphon Editions Ltd, Birmingham, 1983.
2.    Paulo Rogério Bittencourt. Fora da casinha – uma análise histórica da loucura através dos séculos. 2a edição revista e ampliada. Design Editora, Jaraguá do Sul, 2010,
3.    Charles Darwin. The expression of emotions in man and animals and Autobiography. London: The Folio Society, 2008, baseada na 1ª edição da John Murray, 1872.
Shorter Oxford English Dictionary on Historical Principles, 5th Edition, 2002 (Primeira edição 1933), Volumes 1 e 2 (3851 páginas)

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