quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Quase...

Quase...
Cardosofilho

          Descubro que sou quase filósofo. Explico: Theo, garoto de dez anos, neto de Lili, minha mulher, e de quem sou também “quase” avô, indicou-me em um trabalho escolar como “exemplo de caráter construtivo”. Indagado pelo professor sobre a razão da escolha, respondeu que eu era “quase filósofo”. Estou de posse do certificado que muito me honra e enternece. Há, contudo, um porém. Ao lado do carinho que representa, a escolha traz como consequência que, na presença de Theo, terei de só proferir frases inteligentes, ou quase, em conformidade com o título que me concedeu, o que, convenhamos, representa uma dificuldade e tanto. Como ser inteligente o tempo todo, sem escorregar nas inevitáveis e predominantes banalidades e frases sem brilho? Sem pingar pérolas a cada palavra?
          Eis o problema com que me deparo e o divido com o amigo leitor. Contei o sucedido e de pronto ressalvo que não vai na revelação nenhuma pretensão ou exibição de vaidade; contei apenas para dizer que somos, às vezes, mesmo que involuntariamente, farsantes. Fazemos de conta, usamos máscaras, simulamos, dissimulamos, e por aí seguimos a levar a existência cheia de exigências, percalços e circunstâncias complicadas, recorrendo a malabarismos na interpretação de papéis. Desse modo, não é raro produzirmos enganos. O verdadeiro “eu” só existe na solidão.
          É óbvio – adjetivo que, por sinal, Theo tem apreciado utilizar nos dias que correm – que a honraria muito me vale, pois se reveste antes de carinho do que de qualquer outro significado. Mas fica-me a pergunta: o que pretendeu dizer com a expressão “quase filósofo”? É costume ligar a palavra filósofo à ideia de denso e notável saber, e logo vêm à lembrança Sócrates, Platão e Aristóteles, cujas sabedorias monumentais iluminam, desde a antiguidade grega, o pensamento da cultura ocidental. Partindo daí, “quase filósofo” quereria, talvez, significar possuir apreciável saber, ainda que sem a densidade e robustez do intelecto dos grandes filósofos. Em outras palavras, eu ainda não teria chegado lá, e boiaria no ar a possibilidade de estar a caminho. Mas não é nada disso. Há outra explicação: há uns três anos, ofereci a ele o livro de minhas crônicas, mostrou-se interessado, quis saber se todos os demais livros de minha biblioteca teriam sido escritos por mim, expliquei que não, que eram livros que eu havia lido, e Theo deve ter então registrado, em sua compreensão dos sete anos de idade, que eu escrevia livro e lia bastante, ingredientes que contribuíram, agora, para a ideia de me considerar “quase filósofo”. Todavia, hoje, aos dez anos, faltará pouco para desfazer o engano e avaliar com mais precisão meus limites intelectuais, cada vez maior diante da vertiginosa corrida do conhecimento humano.  
          Valerá, para auxiliá-lo na avaliação, dizer-lhe que este escriba pouco ou nada tem de filósofo no sentido de possuir vasta erudição. Que sou, como direi?, apenas um esforçado observador das coisas do mundo, tentando aprender o melhor modo de percorrer a sinuosa, pedregosa e surpreendente caminhada da existência, cuja complexidade ajuda a explicar meus tropeços, engasgos e perplexidades.
          Por fim, que meu querido Theo saiba que, ao longo deste outono e do mais, ou pouco, que me couber, posarei com orgulho de ser “quase filósofo”, título que ele me conferiu, fazendo o que me preenche os dias e me dá prazer: cultivar os caros amigos mediante o ofício de escrever-lhes modestos textos, que, se não me dá dinheiro, e não dá, põe sentido a este veterano aprendiz.

Setembro de 2016.

           

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