quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Catita

Catita
Cardosofilho
Ela fazia bonecas de pano para vender. Começou por necessidade, tomou gosto e cuidou de aprimorar o trabalho. Queria que fossem lindas, que enfeitassem quartos de meninas e mocinhas, que produzissem o encantamento que sentia ao criá-las. Não seriam apenas bonecas de pano feitas na pressa de vendê-las, destinadas a repousar num canto esquecido de uma casa ou em um baú, antes do despejo definitivo junto com velhas tralhas. Fazia-as com demorado esmero e lhes dava nomes: Alice, Bibi, Mel, Luiza, Laura etc., e, enquanto as costurava, escolhia tecidos e imaginava modelos para vesti-las, e os vestidos precisavam ser diferentes e bonitos, cada boneca seria única, como obra de arte, que não deixava de ser. Nesse fazer delicado e envolvente, adquiriu o hábito de falar com as bonecas. Parecia-lhe que isso lhes dava um pouco de vida, criava entre criadora e criaturas um vínculo de afeto, um elo de amor, como fosse uma mãe conversando com as filhas, e sofria ao pensar que, um dia, a qualquer momento, as veria partir com uma compradora. Cuidariam delas com o mesmo amor com que as havia feito? Mas precisava vendê-las. Constituíam seu ganha-pão, e então pedia a cada compradora que cuidasse com carinho de sua boneca de pano.
          Aconteceu com a primeira das bonecas feitas algo interessante. Era a Catita. A artesã, ao terminá-la, detestou o resultado. Olhou-a e deplorou: “Você está horrível!”, sentenciou, “parece uma bruxa!”. O primeiro impulso foi desfazê-la, mas controlou-se e limitou-se a abandoná-la num canto do ateliê. Seguiu em seu lavor e outras bonecas vieram, enquanto Catita repousava desconjuntada, ora aqui, ora ali, conforme os panos e retalhos mudavam de lugar. Se ocorria de a artesã lhe pôr os olhos, repetia com algum desprezo – “Feia!”.  Contudo, por motivo sem explicação, não lhe dava fim, e Catita continuou sua sina de boneca feia, jogada de um canto para outro no pequeno ateliê.
Certo dia, porém, insinuou-se no espírito da artesã algo como remorso. Uma voz interna parecia lhe dizer que, sim, fora cruel com sua primeira boneca de pano e a maltratara com o desprezo. O sentimento foi crescendo, incomodando, e, por fim, levou-a a resgatar Catita de seu abandono. Apanhou-a com o carinho do arrependimento e disse-lhe que não merecia o que lhe fizera, desprezá-la por sua feiura, que a faria linda e lhe daria o merecido lugar entre as outras bonecas de pano. Dado instigante foi observar que os olhos da boneca se haviam manchado. Algo havia borrado a tinta com que haviam sido desenhados. Afirmou-lhe, por fim, que ela, Catita, não sofreria mais e seria feliz. Meticulosamente pôs-se a refazê-la, e suas mãos trabalhavam com o carinho penitencial da mãe que acolhia a filha que renegara por falta de beleza. Mesmo que não ficasse bonita como as outras, não faria diferença. Seria a mais querida e por nenhum valor e nenhuma precisão se desfaria dela. Pronta a boneca em seu vistoso vestido, refeitos os olhos manchados, a artesã a abraçou com ternura. Tornara-se para sempre a boneca de pano de seu coração.
Muito anos depois, a artesã faleceu, e entre seus guardados descobriram Catita, e seus olhos se haviam borrado outra vez.


Setembro de 2016.   

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