quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Caixa das memórias

Caixa das memórias
Cardoso Filho

Duas semanas após a morte do pai, resolveu abrir a caixa de papelão deixada com a recomendação expressa de que só o primogênito a abrisse. Não o fizera antes por um misto de tristeza e desinteresse. O relacionamento entre ambos esfriara, quase ao congelamento, desde a separação conjugal, e a amargura provocada pelo drama não amenizou com o passar dos anos. Pouco o via, pouco se falavam. Considerava traição à família, e o sofrimento prolongado da mãe tornou o quadro mais sombrio e difícil. Mas, agora, a morte punha uma pedra sobre tudo e oferecia aos fatos nova dimensão. O que antes contava perdia sentido, as mágoas ficavam para trás e deixavam apenas um vazio de sentimento. Foi à caixa. Tomou-a com cuidado, levou-a à mesa e a abriu. Sobre a papelada acumulada, um pequeno bilhete, escrito a mão com as letras bem-desenhadas que ele conhecia bem. Dizia pouco. Apenas “Meu filho, examine o conteúdo sem pressa; talvez, ao fim de tantas coisas juntadas, surja-lhe alguma compreensão”.
Pôs-se a vascular os papéis, fotografias e cartões. Principiou pelos mais antigos, depositados no fundo da caixa. Fotografias da infância. Seu pai menino montado num triciclo. Fotos em branco e preto, amareladas pelo tempo. A velha casa onde o pai nascera; a fotografia dele no primário, tirada na escola tendo por fundo a bandeira brasileira; ele com seu cão preferido, do qual se recordava e falava com a ternura de menino. Cartões que escrevera com caligrafia ainda defeituosa, de criança, para o “Dia das Mães”. Havia muito a ver e queria agora examinar com tempo cada papel, cada foto, cada cartão.
Em muitos dias que se seguiram, voltou à caixa, agora revestida de interesse que lhe provocava ansiedade. Fotos da mocidade, dos tempos de namoro, do casamento, dos filhos pequenos, de algumas viagens, tiradas na época em que as fotografias ganhavam materialidade e álbuns. Tivera do pai a imagem de alguém que lhe chegara pronto e acabado. Os registros contidos na caixa iam, no entanto, revelando-lhe um ser que se compunha lentamente sob a ação dos relacionamentos familiares, das amizades e das vivências em um mundo que se transformava e se tumultuava de modo frenético. Chegou aos registros feitos a mão. Inúmeros continham confissões carregadas de pesar marcando seus últimos anos, como se o envelhecer o tivesse levado a compreender a inutilidade de muito que lhe parecera, no passado, importante. Eram o conversar com um confessor imaginário, a quem podia abrir o peito, abrir a alma e revelar seus equívocos, suas dúvidas e as mudanças que o acometiam. Por eles, percebia que o homem de mais de sessenta revelava o espírito que a vida espremera em busca da essência, como a moenda faz com a cana. Os papéis, semelhando um quebra-cabeça, foram montando o pai que ele conhecera pouco. Vira-lhe a superfície e o julgara a partir da perfeição que lhe idealizara. Fora-lhe uma fortaleza que ruíra, o herói que se desfizera, a decepção que ele, filho, não engolira. Mas, agora, as breves confissões mostravam a face humana daquele homem bom, falível como todos, feito de virtudes e defeitos, muitas vezes confuso consigo mesmo e que chegara ao fim sem respostas às suas próprias e mais importantes indagações. Homem de carne, osso e nervos, sem a pureza das ficções, vulnerável a dúvidas e confusões de sentimentos. Ao fim, um pai que os amou a seu modo, como sabia, com o carinho com que colecionara ciosamente os cartões que os filhos lhe haviam oferecido e sobre os quais provavelmente teria se debruçado incontáveis vezes, em dolorosas viagens de recordações.
Fechou a caixa. Não voltaria a ela, porque lhe doeria. E porque alcançara a compreensão.


Agosto de 2016.

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