quinta-feira, 28 de abril de 2016

Jornada solitária

Jornada solitária
Cardoso Filho

“Não venha mais me visitar, faz favor”. A frase de Francisco, Chico na intimidade, dita em despedida, soou como brincadeira. Leandro viera visitá-lo na casa de repouso para idosos, refúgio que o amigo escolhera por livre vontade. Talvez não tivesse sido tão livre a decisão. As circunstâncias contribuíram. Sozinho na viuvez, apertado pela idade, não querendo criar incômodo aos filhos, aos parentes muito menos, que estes, se precisassem ajudar, ajudariam com mal-estar, em obrigação desagradável e difícil, optou por asilar-se naquele recanto até bonito, bucólico, com árvores, flores e gramados, bancos no amplo jardim sob sombras refrescantes, horários certos para as refeições, pessoal para atendimento dos moradores e quarto e banheiro privativos, pequenos mas bem-arrumados, em que pôde instalar alguns pertences seus, como uma poltrona, televisor, computador e livros, estes nem todos, é verdade, porque eram muitos e precisou se desafazer de boa parte. Leandro riu-se e respondeu que voltaria na outra semana. Mas Chico insistiu, com semblante sério, que não viesse mais, e pousou a mão direita no ombro do amigo, num gesto de afeto que parecia querer reforçar o pedido. A despedida interrompeu-se. O apelo dramático, se era para valer, requeria ser esmiuçado, considerou Leandro. Não havia sentido no desejo de Chico, que por todos os modos parecia estar bem das ideias. Com o sorriso já sumido, Leandro disse-lhe que não entendera a piada. Chico, então, estendeu-lhe o braço, pousou-o em suas costas, caminhou com ele pelas pedras do passeio e o conduziu a um banco sob uma das árvores próximas. Sentaram-se e Chico começou a explicar-lhe a resolução que tomara.
          Poderia parecer loucura, mas tivesse certeza de que era algo bem pensando. Ali era seu refúgio derradeiro, se lhe fosse possível permanecer na casa até o fim. Acreditava que poderia pagá-la até lá, desde que o fim não se demorasse demais. Se demorasse além da conta e o custo subisse muito, então veria. Mas ficassem, por hora, com a hipótese boa. E prosseguiu. Precisava fazer sozinho aquela caminhada. Uma jornada solitária. Que ninguém acompanhasse a marcha de sua decrepitude, do envelhecimento ímpio que o espremia como uma prensa. Escondido, cercado de outros idosos desconhecidos, cada um cuidando de seu próprio envelhecer, seria mais fácil e menos doloroso. Não o conheciam, não faziam ideia do que fora, se belo ou feio, não sabiam nada, enfim, e esse anonimato o deixava à vontade. Ninguém a olhá-lo com dor ou pena. Também não incomodaria os outros, só os que trabalhavam ali e recebiam para isso, e a eles pagava com sua contribuição mensal. Leandro, porém, teimava em não compreender. Não fazia sentido, nenhum sentido, até parecia destrambelhamento da cabeça querer entocar-se como se morresse, os amigos lhe fariam bem e se sentiriam felizes em vê-lo de vez em quando, na placidez daquele lugar tomado de árvores e trinados de pássaros, no qual até o ar chegava perfumado de flores e ervas, com tempo repousante para o muito que havia para conversar.
          Chico fincou o pé na decisão. Irredutível. Na verdade, os amigos sofreriam nas visitas. Além do mais, precisava caminhar só, enfiado nas sombras do recolhimento, a pensar sobre o que fizera na vida e a buscar acertar as contas pendentes em seu espírito. Com seus restos de livro para reler, seus poucos guardados e nenhuma fotografia. Não queria contemplá-las, não queria confrontar-se com as imagens mortas e sofrer as emoções que elas provocariam. Que o trabalho da natureza continuasse a desfazê-lo, a reduzi-lo, a prepará-lo para o pó inevitável, mas longe do olhar dos que ele queria bem. Podia ser estranho, difícil de compreender, mas faria como os elefantes velhos, que, segundo a lenda, ao pressentirem o fim, se afastavam da manada para morrerem longe do compadecimento geral. Finalizou dizendo que a morte, que devia estar próxima, não o incomodava. Ao contrário, desafiava a imaginação. Não via a hora de descobrir o que se escondia do outro lado.
          Abraçaram-se, e Leandro o viu afastar-se devagar pelas pedras do passeio, como se a diluir-se nas sombras do entardecer.


Abril de 2016.   

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Meditar

Se o entusiasta está em crescer na espiritualidade 
O  cabotino pela ignorância sempre se realça
Ambos buscam o mesmo caminho da identidade
Só que diante da sabedoria que em nós é escassa 
Há de se compreender e vivificar à luz da realidade!..

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Partir

Partir
Cardoso Filho
Com expressão de desânimo e aturdimento, disse que irá embora. Mencionou um destino remoto, na aparência sem muita razão de ser, soando algo exótico, com jeito de sonho como outros que alimentou. Mas mostrou disposição. Na razão de tudo, o desejo de deixar para trás o feito e o não feito, como quem apaga a lousa para iniciar nova escrita. Terá razão? Quem saberá dizer? Suponho que contribua para seu decidir o momento que vive o Brasil, de horror econômico, caos político e desilusão encravada na alma. Terra que aparenta condenada a viver, por muito tempo ainda, entre a demagogia política e a corrupção sem freio, refém do messianismo de líderes populistas maléficos, burrice burocrática e ineficiência das leis e da Justiça. Razões que pesam bastante para a vontade de deixar o país e encontrar canto mais civilizado.
          Olhando por seus olhos, é compreensível a pretensão. O tempo lhe vai na altura em que rompe num galope, a idade avança, oportunidades foram deixadas para trás e o mercado de trabalho se encolhe cada vez mais. As empresas querem sangue novo. Homem mais velho só com especialidade e experiência que o distingam. Existiria a opção de tocar negócio próprio, mas poucos possuem qualificação e recursos para enfrentar o risco. Muitos tentam e quebram. Sobraria começar por baixo, modestamente, mas... ah, a vitrine social! Como expor a singeleza de emprego e salário aos parentes e amigos, como suportar comparações com os mais bem-sucedidos? Vem a ânsia por atalhos, de comum perigosos e traiçoeiros. Mas é preciso correr. Arriscar. Tentar em outro mundo o que não conseguiu aqui, levando na mala a disposição de trabalhar em qualquer serviço na nova terra, conforme a precisão, sem o constrangimento de aceitar empregos simples e menores.
          Suponho que a decisão esteja consolidada. Partir, cerrar a porta do passado, deixar laços e afetos, suportar a nostalgia e começar nova vida onde os sonhos possam renascer-lhe. Quem sabe bem longe, na caminhada solitária, esteja sua verdade e a realização de seus desejos.
          Se de fato partir, que siga com Deus e leve no peito a fibra dos que desembarcam na nova terra e queimam as naus.

Abril de 2016.

           

GRATIDÃO OS HEROIS DA PANDEMIA